Por Rafael Baliardo e Rodrigo Haidar*, na Revista Consultor Jurídico.
Desnecessária porque é perfeitamente possível fazer a tão
esperada reforma política dentro dos marcos legítimos fixados pela Constituição
Federal de 1988. Ou seja, por meio de projetos de lei e propostas de emenda à
Constituição.
Juridicamente duvidosa porque não é possível se convocar uma
Assembleia Constituinte para tratar de um assunto específico. O poder
constituinte originário é ilimitado. Logo, poderia avançar para muito além da
reforma política. E perigosa porque constituinte não têm compromissos com a
ordem jurídica vigente. Logo, é possível romper com a ordem vigente hoje no
país e que garantiu, até hoje, 25 anos de estabilidade institucional.
“Sob a roupagem da reforma política, pode-se reestruturar o
país. Pode-se diminuir o tempo de mandato do presidente da República, por
exemplo. Alterar a forma de escolha dos ministros do Supremo ou fixar mandatos.
Na prática, é a criação de um quarto poder que poderá mais do que os outros
três poderes”, afirmou à ConJur um ministro do Supremo Tribunal Federal que
criticou a ideia. Para ele, reforma política se faz por meio de leis e emendas
à Constituição.
O ministro aposentado do Supremo Ayres Britto afirmou que
enxerga bons propósitos na ideia da presidente da República. “Vê-se que ela
está bem intencionada, que quer acertar”, disse. De acordo com o ministro,
contudo, a Constituição Federal não dá ao Congresso o poder de convocar um
plebiscito para tratar da matéria específica. “O Congresso Nacional pode, por
motivos de conveniência e oportunidade, repassar para o povo, convocado
plebiscitariamente, seu poder normativo. Ou seja, só pode convocar o povo a
decidir sobre os temas que ele próprio, Congresso, tem legitimidade para
decidir. Não é o caso de convocação de plebiscito para decidir a instalação de
uma Assembleia Constituinte”, disse.
Ayres Britto deu exemplos práticos. O Congresso convocou um
referendo para decidir sobre o desarmamento no Brasil. Momentaneamente,
portanto, deixou de lado a democracia representativa, por meio da qual
deputados e senadores fixam os marcos normativos do país, e convocou a
população a se manifestar por meio da democracia direta. Mas o Congresso passou
ao povo o poder de deliberar em seu lugar, sobre uma decisão que ele mesmo
poderia tomar.
O Congresso não poderia, por exemplo, convocar um plebiscito
para decidir sobre a fixação da pena de morte no Brasil. Isso porque ele
próprio não tem o poder de legislar em relação ao tema. Logo, se não cabe ao
Congresso decidir sobre a instalação de uma Assembleia Constituinte, não tem o
poder de convocar um plebiscito para decidir sobre a matéria.
“Nenhuma Constituição tem vocação para o suicídio. Por isso,
não prevê a possibilidade de se convocar uma Assembleia Constituinte. Toda
Constituinte é a sentença de morte da Constituição anterior e, neste caso, o
Congresso Nacional não pode convocar o povo para agir como o coveiro da
Constituição de 1988, que agora é que começa a dar seus belos frutos”, afirmou
Ayres Britto.
Ideia inusitada
O ministro aposentado do Supremo Carlos Velloso afirmou
desconhecer a figura da “Constituinte exclusiva”. Para ele, uma mudança neste
grau pode e deveria ser feita mediante emenda constitucional. “Isso é um
despropósito. Uma medida para enganar a população que está nas ruas pedindo
reforma”, disse o ministro, que presidiu o STF entre 1999 e 2001.
“Essa medida de plebiscito, que eu considero um absurdo, é
algo inusitado que esconde qualquer coisa porque não tem apoio na ordem
jurídica. Sem dúvida, não tem fundamento jurídico”, criticou.
Já o ministro Marco Aurélio não entrou no mérito de ser ou
não juridicamente possível um plebiscito para convocar uma Assembleia
Constituinte, atribuindo à declaração da presidente um efeito de “força de
expressão”. Para o ministro, como o momento exige uma tomada séria de
providências, a presidente “usou algo para realmente impactar”. Marco Aurélio
afirmou que a realização de um plebiscito é desnecessária, dada a insatisfação
da sociedade ser evidente, e que a reforma política pode ocorrer por meio de
emendas constitucionais.
“O que a presidente quis dizer foi ressaltar a necessidade
de uma mudança de rota. E, portanto, de providências dos poderes constituídos,
principalmente do Congresso. Será que é necessário o plebiscito? É só perceber
anseios da sociedade, que quer mudanças no campo ético, no arcabouço normativo
e atenção maior para os serviços públicos”, disse. O ministro afirmou que não
imagina uma convocação extraordinária para a reforma política, “quando podemos
consertar sem lançar mão de uma nova Constituinte”.
Proposta legítima
Para o ministro aposentado do STF Francisco Rezek, ex-juiz
da Corte Internacional de Justiça de Haia, a nomenclatura “Constituinte” é
menos importante diante do atual quadro do país. Ele considera que a presidente
Dilma Rousseff parte da premissa correta de que os atuais membros do Congresso
Nacional não são os melhores quadros para empreender uma reforma política.
O que importa, para o ministro, é que há uma reação diante
da onda de manifestações nas ruas e da perda de representatividade dos membros
do Congresso Nacional, que demonstram a necessidade de se fazer com urgência a
reforma no sistema político do país. Ou seja, enxergam na ação da presidente
uma boa intenção, que pode ser levada a cabo de outra forma.
“Um colegiado que fosse eleito só para tratar da reforma
política, que não fosse constituído pelos membros regulares do Congresso, teria
mais qualidade”, afirmou Rezek. O ministro afirmou que a discussão não é nova.
Nos anos 1980, lembrou, se discutiu a possibilidade da eleição de uma
Assembleia Constituinte separada do Congresso, que se dissolvesse após a
elaboração da Constituição. Ao fim, se decidiu transformar o Congresso em
Assembleia Nacional Constituinte.
“A ideia é correta. Não seria propriamente uma Assembleia
Constituinte. Nós teríamos aí um colegiado para a reforma política na
Constituição, para modificar na Constituição apenas o necessário para que o
produto dessa mudança signifique a autêntica reforma política que todos esperam
alcançar. É uma questão de adaptar a nomenclatura, mas a ideia é a melhor
possível”, defendeu o ministro aposentado.
Processo de reforma
O advogado constitucionalista Gustavo Binenbojm questionou a
necessidade política da convocação de uma Assembleia Constituinte diante da
história recente do país. De acordo com ele, o fato de a Constituição de 1988,
em seus 25 anos, ter sido alvo de 73 emendas mostra que o processo de reforma
da Constituição do Brasil é um processo facilmente acessível pelo trabalho do
constituinte derivado.
“O processo é factível, é alcançável. Por que, se é possível
alcançar o resultado desejável no âmbito do Congresso e dentro dos marcos
constitucionais em vigor, se instalar uma Assembleia Constituinte?”, questionou
Binenbojm. “Não creio que haja a necessidade. Parte da reforma pode ser feita
por emendas à Constituição e parte por meio de leis ordinárias”, completou.
O advogado lembrou uma frase do ministro Ayres Britto: “O
poder constituinte originário é o poder que tudo pode, só não pode o não
poder”. De acordo com o advogado, o poder de uma Assembleia Constituinte é
juridicamente ilimitado, insuscetível de qualquer controle. “Há um risco
inerente a qualquer processo constituinte originário, que é o risco para as
instituições democráticas”, afirmou.
Gustavo Binenbojm lembrou que a instalação da Constituinte
que deu à luz a Constituição de 1988 se deu a partir de um processo de ruptura
com a ordem jurídica anterior, que havia esgotado seu lastro de legitimidade.
“Não é o caso do Brasil de hoje, em que vivemos em um regime democrático,
dentro de um Estado de Democrático de Direito. Se o poder de uma Assembleia
Constituinte é juridicamente ilimitado, o próprio Supremo Tribunal Federal não
terá liberdade para controlar. Há uma preocupação política com os rumos de uma
convocação dessa natureza”, opinou o advogado.
“Sopesando bem os prós e contras, acho que essa energia
popular presente nas manifestações nas ruas poderia ser canalizada para um
processo de reforma construído dentro dos marcos da Constituição Federal de
1988, com a salvaguarda de que os direitos das minorias e os direitos e
garantias fundamentais serão preservados”, concluiu.
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, também afirmou que do ponto de vista
técnico, a proposta da presidente Dilma Rousseff se torna inviável. “Não apenas
pelos riscos inerentes dessa iniciativa, como também em face do poder ilimitado
que lhe permite reformar ou fazer o que bem entender. Em resumo, não é possível
convocar uma Constituinte para discutir matéria ‘a’ ou ‘b’, pois é ela própria
quem define”, afirmou.
Segundo Furtado Coêlho, nada impede que a iniciativa alcance
matérias relativas à liberdade de imprensa, garantias individuais e tantas
outras sobre as quais a sociedade precisa constantemente se manter vigilante
para que não pereçam. “A atual Constituição, às vésperas de celebrar 25 anos,
ainda é fator de mobilização social, como vemos agora, para assegurar a
efetivação de direitos. Acaba sendo, portanto, uma carta em branco”, disse o
presidente nacional da OAB.
*Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em
Brasília.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em
Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 24 de junho de 2013
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